Reflexões acerca do sentido da Sociologia no Ensino Médio

Baixar o anexo original, na lista do macs_sul, por Lê Bandoli e V. Boni

Reflexões acerca do sentido da Sociologia no Ensino Médio

Flávio Marcos Silva Sarandy1

Uma história de desencontros: a implantação da disciplina no Brasil

A sociologia sempre foi vista de modos contraditórios. Ora entendida como “revolucionária” ou “de esquerda” – uma ameaça à conservação dos regimes políticos estabelecidos –, ora como expressão do pensamento conservador e “técnica de controle social”, uma entre tantas formas engendradas pelos diversos Estados no seu afã de manterem a ordem constituída. “Em maio de 1968, durante a revolta dos estudantes de Paris, viu-se escrito em um muro da Sorbone: ‘Não teríamos mais problemas quando o último sociólogo fosse estrangulado com as tripas do último burocrata’. Neste mesmo ano, os coronéis gregos acusavam esta ciência de disfarce do marxismo” (O que é Sociologia, Carlos Benedito Martins, São Paulo, Brasiliense, 1996). Do mesmo modo, os governos militares da América Latina sempre olharam enviesados para os sociólogos e suas pesquisas. O que a maioria não percebe é que um sociólogo francês, um outro russo e um terceiro norte-americano mal conseguiam se entender até a década de 1950 (As etapas do pensamento sociológico, Aron, Raymond. 1995, São Paulo, Marins Fontes), um quadro que não parece ter se alterado significativamente. Isto se explica pelo fato de a sociologia abranger uma grande quantidade de linhas teóricas e paradigmas, bem como pelo fato de ter sofrido influências ideológicas e de orientações políticas variadas. São dezenas de correntes teóricas muito diferentes e enfoques diversos sob uma mesma denominação científica que, por vezes, parecem até mesmo tratar-se de ciências distintas.

Entretanto, o desenvolvimento das pesquisas sociológicas e as preocupações com a implantação da Sociologia como disciplina obrigatória nos currículos escolares também encontraram defensores. Em 1890, Benjamin Constant propôs uma reforma de ensino que introduzia a Sociologia como disciplina obrigatória nos cursos superior e secundário; a proposta foi descartada após sua morte. A reforma Rocha Vaz, em 1925, implementou-a em escolas secundárias do Brasil e foi ratificada com a reforma Francisco Campos (1931). Em 1942, a Reforma Capanema retira a obrigatoriedade do ensino da Sociologia da escola secundária e, com o golpe de 1964 ela foi definitivamente excluída dos currículos desse nível de ensino (“Breve história da disciplina”, in Sociologia, Paulo Meksenas, Cortez, 1994). “É somente com a recente promulgação da Lei nº. 7.044/82 que a Sociologia começa a ser lentamente reabilitada pelos programas curriculares. Isto porque a tônica dada à profissionalização pela Lei anterior (nº. 5.692/71) cede lugar a uma concepção de educação mais abrangente, viabilizada por uma escola de que contribua com a construção do direito à cidadania” (Paulo Meksenas, op.cit., 1994).

Com a nova LDB, Lei nº. 9.394/96, a situação da disciplina fica ainda mais clara: agora a sociologia é definitivamente incluída como um dos conteúdos a serem aprendidos pelo educando durante o Ensino Médio – ao lado de outras ciências como o direito, a psicologia e a economia. Após termos visto a sociologia ser proscrita deste país pelo governo dos generais como se fosse uma ameaça à estabilidade da nova ordem, o valor dado às ciências sociais em geral pelos Parâmetros Curriculares Nacionais é um indicador da revalorização deste conhecimento, ainda que tímida, por parte da sociedade brasileira.

Ciências sociais no ensino

médio: reprodução e militância

Diante do debate que vem se intensificando na sociedade brasileira acerca do retorno da sociologia no ensino médio – mais restrito, porém, aos meios escolares, à academia e às listas de discussão e fóruns da internet, com pouca repercussão na grande mídia – e da necessidade de construir a legitimidade social da disciplina nos currículos escolares, deve-se levantar algumas observações que, ao meu ver, apontam para problemas concretos relativo ao ensino de sociologia na escola de nível médio.

Em primeiro lugar, é necessário ressaltar que as orientações dos Parâmetros Curriculares Nacionais e da LDB de 1996 são, sem dúvida alguma, fonte de importantes reflexões e definem de modo claro a possível contribuição da Sociologia enquanto disciplina do nível médio, bem como fornecem um programa de estudos completo por meio de palavras-chave constituídas de conceitos das ciências sociais. No entanto, os PCNs carecem de uma orientação metodológica e didática apropriada ao ensino dessas disciplinas. Falta ao texto oficial, portanto, sugestões para a operacionalização do ensino escolar das ciências sociais.

De fato, os cientistas sociais não contam com larga experiência nesse nível de ensino, ao contrário dos seus colegas historiadores ou geógrafos. As experiências com o ensino de sociologia no ensino médio são bastante dispersas entre regiões do país e profissionais e contam com o agravante de não existir uma rede de comunicação e diálogo que favoreça maior intercâmbio de idéias e experiências práticas.

Na maioria das vezes, as experiências com o ensino não são registradas, não integram um sistema cumulativo de experiências históricas da comunidade de cientistas sociais e nem sempre estão amplamente disponíveis. As licenciaturas em ciências sociais estão organizadas de tal modo que as disciplinas didáticas são cursadas ao final da graduação, como que por mera obrigação curricular. Normalmente o que se vê são cursos de ciências sociais voltados para o bacharelado, para a formação do pesquisador e para a reprodução de uma dicotomia entre ensino e pesquisa. Ainda que a Sociologia sempre tenha estado intimamente ligada à problemática da educação, que é responsável por um extenso campo de pesquisas desde sua fundação, é a figura do pesquisador que é posta em relevo, não a do educador.

Por fim, um último problema relativo ao debate sobre o retorno da Sociologia no ensino médio é o que diz respeito aos livros existentes no mercado, que já demonstram muito do que se concebe, em termos teóricos e metodológicos, sobre o ensino de Sociologia nessa etapa da educação básica. A concepção dos objetivos do ensino de sociologia, seu sentido no ensino médio, a seleção e o arranjo dos conteúdos, bem como as propostas didáticas para a sala de aula (quando existem) denotam uma compreensão específica que deve ser investigada e que não se restringe aos livros didáticos, mas se reproduz nos planos de curso e estratégias de didáticas adotadas.

Ensino de Sociologia no nível médio: qual Sociologia?

Ao afirmar a pouca legitimidade da sociologia enquanto disciplina do ensino médio e, como conseqüência direta desse fato, a necessidade da construção de um consenso social mínimo quanto a sua importância nos projetos pedagógicos das escolas, parto da idéia de que o problema da legitimidade da disciplina, os apontados anteriormente nos textos oficiais e nos livros didáticos/ planos de curso e a não existência de um campo de estudos consolidado sobre ensino de sociologia, têm uma origem comum: a falta de tradição das ciências sociais nos meios escolares e sua intermitência enquanto disciplina escolar.

A situação descrita anteriormente, como a vejo, pode ser expressa do seguinte modo: a carência de reflexões e orientações pedagógicas dos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes ao ensino de ciências sociais e o modo como são organizados os livros didáticos e os planos de curso têm como origem dois vieses nas práticas pedagógicas dos professores do ensino médio: o academicismo – que, em grande medida, reproduz os modelos aprendidos na graduação – e a militância ideologicamente orientada – que, em grande medida, é responsável pelo recorte específico dos conceitos e temáticas normalmente trabalhados ou, até mesmo, pelo sentido dado a certos conceitos sociológicos. Esses dois vieses acabam por contribuir tanto para uma baixa qualidade no ensino dessa disciplina, quanto para sua pouca legitimidade social.

Afirmar que a disciplina deve se fundar em certos valores políticos ou que deve assumir uma orientação política – seja ela qual for – não significa eliminar a preocupação com a aprendizagem, com a qualidade do ensino e com a honestidade intelectual que deve permear o trabalho do professor, seja que área for sua formação. O que defino como ensino militante, portanto, não é a existência de uma postura política por parte de professores de tal ou qual disciplina ou o ensino dos conhecimentos acerca da realidade social produzidos pelas ciências sociais e validados por meios de verificação científica o que, vale lembrar, os tornam sempre criticáveis – falsificáveis –, mas simplesmente o fato de se reduzir o ensino de uma disciplina científica ao ensino de uma ideologia específica, dotada de valor de verdade. Aliás, assim é ou deveria ser com o ensino de qualquer ciência: como tal, ela deveria ser apresentada como sempre e necessariamente provisória, uma instituição social e histórica; do contrário, estaremos sendo dogmáticos e desonestos em relação à nossa ciência, quando não ensinando idéias falsas.

É interessante observarmos que tanto o que chamo de ensino academicista, quanto o que chamo de ensino militante caracterizam uma carência enorme em nossa área de saber: a falta de pesquisas sobre ensino em ciências sociais, a falta de produção de bons livros didáticos, a falta de preocupação com estratégias de ensino-aprendizagem dos conhecimentos produzidos pelas ciências sociais. Este ensaio pretende justamente problematizar esta situação, contribuir para a construção de um projeto para a sociologia no ensino médio e justificar sua relevância social.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Sociologia

A atual reforma educacional brasileira marca um importante momento para as ciências sociais no Brasil. Com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº. 9.394 de 1996, e com os Parâmetros Curriculares Nacionais, a Sociologia, a Antropologia e a Ciência Política ganham lugar de destaque nos documentos oficiais que orientam a educação em nosso país, especialmente no que se refere ao ensino médio. Por outro lado, se no discurso oficial as ciências sociais são tidas como relevantes para os objetivos propostos para a educação básica, as práticas dos gestores do ensino público denotam desconhecimento sobre as disciplinas e, não raro, completa indiferença ou mesmo oposição à sua implantação.

As mudanças propostas pela LDB e pelos PCNs implicam na construção e implantação de um projeto pedagógico (organização curricular, orientação metodológica, organização administrativa, recursos etc.) que se paute efetivamente pelos seguintes princípios: Flexibilidade, Autonomia, Identidade, Diversidade, Interdisciplinaridade e Contextualização. Fundamentado nestes princípios, o objetivo do Ensino Médio está expresso no vínculo dessa etapa da educação escolar “com o mundo do trabalho e a prática social”, conforme a LDB, o Parecer n.º 15/98 e a Resolução n.º 3/98, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. A orientação é para as escolas dirigirem seus programas, atividades, projetos e currículos para a “preparação básica para o trabalho” e para o “exercício da cidadania”, que seriam os dois grandes eixos norteadores que definem o novo sentido para o antigo 2º grau. Essas orientações estariam norteadas pelos quatro pilares da educação como propõe a UNESCO: o aprender a conhecer, o aprender a fazer, o aprender a conviver e o aprender a ser.

A reforma educacional brasileira, conforme os PCNs, reinterpreta esses princípios afirmando a estética da sensibilidade, a política da igualdade e a ética da identidade. “A estética da sensibilidade, que supera a padronização e estimula a criatividade e o espírito inventivo, está presente no aprender a conhecer e no aprender a fazer, como dois momentos da mesma experiência humana, superando-se a falsa divisão entre teoria e prática. A política da igualdade, que consagra o Estado de Direito e a democracia, está corporificada no aprender a conviver, na construção de uma sociedade solidária através da ação cooperativa e não-individualista. A ética da identidade, exigida pelo desafio de uma educação voltada para a constituição de identidades responsáveis e solidárias, comprometidas com a inserção em seu tempo e em seu espaço, pressupõe o aprender a ser, objetivo máximo da ação que educa” (PCN para o E. Médio, vol. 4).

Supondo a contribuição da Sociologia no que tange à “compreensão das práticas sociais”, à “preparação básica para o trabalho” e ao “exercício da cidadania” a LDB, em seu artigo 36, estabelece que “ao final do ensino médio o educando demonstre (…) domínio dos conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania”; também a resolução nº 3/98, em seu artigo 10, inciso i, parágrafo 2º, diz que “as propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para (…) conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania”; já os PCNs (Ensino Médio, volume 4, na página 11) orientam que “o objetivo foi afirmar que conhecimentos dessas (…) disciplinas são indispensáveis à formação básica do cidadão, seja no que diz respeito aos principais conceitos e métodos com que operam, seja no que diz respeito a situações concretas do cotidiano social”. Desse modo, podemos observar que os Parâmetros Curriculares Nacionais e da LDB de 1996 definem de modo claro a possível contribuição da sociologia enquanto disciplina do nível médio.

No entanto, a orientação dos documentos da reforma não foi suficiente para a decisão de implantar-se a Sociologia como disciplina nos currículos do ensino médio. Com a possibilidade do retorno das ciências sociais no corpo de uma disciplina obrigatória no ensino médio, o Deputado Padre Roque (PT/PR) apresentou um projeto de emenda a LDB (PLC 09 de 2000) que previa a obrigatoriedade da sociologia no ensino médio. O projeto foi aprovado pelo Congresso Nacional e vetado, na íntegra, pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, seguindo orientação do MEC que se posicionou contrário à implantação da disciplina. A justificativa para o veto, entre outras de ordem técnico-financeira, afirma a presença das ciências sociais em outras disciplinas ou “diluídas” nos Temas Transversais, o que constitui um contra-senso na medida em que a justificativa do veto também aponta para a falta de profissionais preparados para o ensino desses conhecimentos.

No Espírito Santo, a coordenação da reforma do ensino médio insistia – até o início do ano de 2001, quando foi derrubado o veto do governador José Ignácio Ferreira ao projeto de lei estadual que estabelece obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia no ensino médio, Lei nº 6.649, de 11 de abril de 2001 – que conteúdos das disciplinas de Sociologia e Filosofia deveriam ser trabalhados por outras disciplinas. A proposta era a de organizar módulos de ensino, ou diluir os conteúdos específicos dessas disciplinas no programa curricular de história e geografia. Os argumentos eram os mais absurdos: desde a falta de professores em número suficiente – ainda que não se disponha de dados nesse sentido – até o aumento de despesa com pessoal.

Além desses argumentos, têm-se apresentado como justificativa para a não inclusão da disciplina uma certa interpretação dos textos oficiais: o fato da Lei de Diretrizes e Bases da Educação e dos Parâmetros Curriculares Nacionais não “determinarem” o ensino da sociologia e da filosofia por meio de disciplinas. De fato, a Lei 9.394/96, em seu Artigo 36, Parágrafo 1º, item III, reza que ao final do Ensino Médio o educando deverá demonstrar “domínio dos conhecimentos de filosofia e de sociologia necessários para o exercício da cidadania”, mas não estabelece que seu ensino seja incluído entre as disciplinas do núcleo básico, aquelas consideradas obrigatórias. Os PCNs para o Ensino Médio, volume 4, na página 11, após referir-se aos conhecimentos da história, geografia, sociologia, filosofia, antropologia, direito, política, economia e psicologia, estabelecem que “tais indicações não visam a propor à escola que explicite denominação e carga horária para esses conteúdos na forma de disciplinas”. E mais adiante, na página 22, afirma que esses conteúdos “agrupados e reagrupados, a critério da escola, em disciplinas específicas ou em projetos, programas e atividades que superem a fragmentação disciplinar (…)”. Ora, a LDB, que tem força de lei, não orienta sobre o modo de introdução desses conhecimentos. Já os PCNs deixam em aberto, mas não descartam a possibilidade de organização de disciplinas, que ficaria a critério da escola. É interessante observarmos, ainda, que tratam num mesmo nível de importância a história, a geografia, a sociologia ou a filosofia. Portanto, afirmar que não devemos estabelecer as disciplinas nos currículos escolares por coerência à lei é distorcer as orientações contidas nesses documentos que em nenhum momento proíbem sua implantação. E se lançarmos mão desse argumento ele terá que servir também para a história e geografia, o que nos leva ao ponto inicial.

O objetivo da disciplina Sociologia no Ensino Médio

Para compreendermos o sentido da sociologia como disciplina da grade curricular do Ensino Médio deveremos, antes de tudo, compreender os objetivos que por meio dela se pretende atingir. Esses objetivos podem ser divididos em duas classes: os que são específicos para a disciplina e os que não se restringem a ela, indo ao encontro dos que foram traçados para o Ensino Médio a partir da Lei n.º. 9.394, de 1996.

Entretanto, antes de se estabelecer os objetivos para a disciplina, deveremos dimensionar a importância da sociologia enquanto disciplina do nível médio de ensino, o que significa perguntar sobre seu sentido, buscar compreender o que ela tem de específico que não encontramos nas disciplinas de história, geografia ou filosofia; enfim, perguntar qual sua especificidade em relação às demais disciplinas de humanidades. Essa pergunta não é de fácil resposta e todo pesquisador da área de ciências humanas sabe que as fronteiras entre as suas diversas áreas são bastante tênues. E acrescenta-se a isso o fato de que transformar os saberes científicos em saberes escolares implica em um grau de diferenciação e criação de identidades entre as diversas disciplinas. A história e a geografia, provavelmente devido à longa tradição no meio escolar, estão bem estabelecidas, possuem um discurso construído sobre a realidade já aceito e amplamente disponível para os professores do ensino médio. A sociologia conta com este agravante, qual seja, construir um saber organizado de modo a ser viável sua introdução no nível médio de ensino. Acredito ser importante criar diferenças entre as disciplinas e afirmar uma identidade para a sociologia, ainda que isso pareça contrariar a noção de interdisciplinaridade, tão em voga atualmente.

Mas isto não responde à questão proposta: o que marca a especificidade da sociologia e torna importante sua introdução nos meios escolares? O filósofo e sociólogo Gilson Teixeira Leite (Jornal A Gazeta em 11/12/00) afirmou que “se é imprescindível dominar a informática e todas as novas tecnologias para uma colocação qualificada no mercado de trabalho, também se faz necessário, no universo educacional, problematizar a vida do próprio aluno, sua existência real num mundo real, com suas implicações nos diversos campos da vida: ético-moral, sociopolítico, religioso, cultural e econômico”. E conclui que “a volta das disciplinas humanísticas – filosofia, sociologia, antropologia, psicologia, entre outras – tem muito a contribuir com a formação do jovem naquilo que lhe é mais peculiar: o questionamento. Desmistificando ideologias e apurando o pensamento crítico das novas gerações, poderemos continuar sonhando, e construindo, um país, não de iguais, mas justo para mulheres e homens que apenas querem viver”.

Isto nos remete à contribuição que a sociologia pode dar para o desenvolvimento do pensamento crítico, não porque teria um conteúdo imprescindível – não devemos pensar de modo messiânico na sociologia; nem o pensamento crítico se desenvolve devido à aprendizagem de algum tipo especial de conteúdo ou disciplina. Como Gilson bem expressou, a sociologia tem a contribuir para o desenvolvimento do pensamento crítico, ao lado de outras disciplinas, pois promove o contato do aluno com sua realidade, e podemos acrescentar, bem como o seu confronto com realidades distantes e culturalmente diferentes. É justamente nesse movimento de distanciamento do olhar sobre nossa própria realidade e de aproximação sobre realidades outras que desenvolvemos uma compreensão crítica.

A cientista política Marta Zorzal e Silva (Gazeta Mercantil também em 11/12/00), numa interessante reflexão sobre as mudanças no mundo contemporâneo – no campo das tecnologias, nas relações de trabalho e nas relações culturais – devido “aos impactos dos processos que têm sido denominados de globalização”, afirma que a informação tornou-se elemento estratégico para o mundo globalizado.

A autora ainda observa que “a informação em si é um dado bruto (…) o ato de transformar a informação em conhecimento não é uma tarefa simples. Exige capacidade de processamento da mesma. Significa (…) saber o que pode ser feito com os “tijolos de saberes” que o sistema de ensino fornece (…) isto implica em capacidade de raciocínio, de questionamento, do confronto de outras fontes e experiências, enfim, habilidades que se adquire ao ser treinado a ver os mesmos panoramas a partir de diferentes perspectivas. Essa é a habilidade que se adquire por excelência com o estudo das ciências humanas e, em especial, com a filosofia e a sociologia. É da essência destes campos de conhecimento a tarefa de desenvolver o pensamento, sem nenhuma utilidade ou objetivo prático. A preocupação maior está em educar o olhar e processar tanto informações como saberes já produzidos”.

Diante do desafio de nosso tempo ela questiona a nossa capacidade de desenvolvermos o gerenciamento da informação para que possamos ter competitividade no mercado global. Mas lembra que a maioria dos países do Leste Asiático superou suas condições e tornaram-se competitivos. Entre os vários fatores que permitiram esse avanço, Marta Zorzal afirma que se destaca a educação: “todos construíram sólidos alicerces fundados na boa educação pública estendida a maioria da população”. Mas a educação deve conter esse aspecto de permitir o confronto de diferentes perspectivas e que é por excelência o que faz a sociologia.

Eis aqui uma contribuição fundamental da sociologia para os jovens educandos: o estudo e o conhecimento da realidade social, em si mesma dinâmica e complexa, a compreensão dos processos sociais e seus mecanismos e a percepção de nossa própria condição enquanto atores sociais capazes de intervir na realidade. Essas competências e habilidades fornecem os elementos necessários para a formação de uma pessoa, de um cidadão e de um profissional, seja em que área for, consciente de sua posição, potencialidades e capacidade de ação.

O conhecimento sociológico certamente beneficiará o educando na medida em que lhe permitirá uma análise mais acurada da realidade que o cerca e na qual está inserido. Segundo a socióloga Cristina Costa “o conhecimento sociológico é mais profundo e amplo do que a simples formação técnica – representa uma tomada de consciência de aspectos importantes da ação humana e da realidade na qual se manifesta. Adquirir uma visão sociológica do mundo ultrapassa a simples profissionalização, pois, nos mais diversos campos do comportamento humano, o conhecimento sociológico pode levar a um maior comprometimento e responsabilidade para com a sociedade em que se vive” (Sociologia – introdução à ciência da sociedade, Cristina Costa, Editora Moderna, 1997). Vivemos a herança de um difícil processo de transição para a democracia e por isso é imprescindível que a escola assuma seu papel neste processo, preparando as crianças e os jovens para o exercício consciente e responsável da vida democrática e minorando os efeitos sociais de toda uma geração educada para a passividade e o embotamento do pensamento crítico e comprometido. Para que isso ocorra, além de exigências político-institucionais é de fundamental importância a introdução, nas instituições escolares, de um tipo de reflexão e pesquisa que se paute no conhecimento das ciências sociais e que oriente a formação de nossos alunos para o fortalecimento da democracia enquanto valor social fundamental e para sua construção a partir da vida cotidiana. O ensino da sociologia deve fornecer, então, condições para um aprendizado que permita uma interferência consciente na sociedade por parte de seus cidadãos a fim de que sejam garantidas as mudanças necessárias à superação dos desafios atuais de nossa sociedade.

O sentido e a especificidade da disciplina:

desenvolver uma nova atitude cognitiva

A discussão iniciada nos itens anteriores abre-nos um campo interessante de reflexão que merece ser explorado; as respostas sobre a importância e especificidade da sociologia referem-se tanto a uma abordagem especial – que nenhuma outra disciplina promoveria –, quanto aos conteúdos de nossa ciência – seu quadro teórico-conceitual. Ora, podemos perguntar: estaria o sentido do ensino de sociologia na construção de um plano curricular? É tecendo um elenco de conceitos ou temáticas que estaremos delimitando o campo da disciplina nos currículos do ensino médio? Temos dado muita ênfase ao velho debate acerca do ensino conceitual ou temático que não fazem mais que tornar o professor de sociologia um arquiteto de planos de curso, empobrecendo a possibilidade da disciplina na escola na mesma medida em que a aproxima do modo como são tratados os conhecimentos já instituídos, que fornecem retratos de um mundo estático e a falsa identidade do saber com a noção corrente de verdade.

Creio ser interessante nos voltarmos exclusivamente, neste momento, para a abordagem específica da sociologia ou das ciências sociais sobre a realidade humana como meio de tornarmos ainda mais precisa sua distinção em relação às demais disciplinas do nível médio e, a partir disto, explicitarmos sua importância e sua identidade. Para isto, quero começar dando um exemplo tirado de outra área.

A professora Ana Cláudia Nahas, Coordenadora da área de Educação Musical do Centro Educacional Leonardo Da Vinci, fez essa mesma pergunta, em certo momento, mas referindo-se a área de música. Qual a especificidade da Educação Musical, que lhe garante significado enquanto disciplina escolar em meio a outras disciplinas estéticas? A que conclusão ela chegou? Que a música não tem sua importância por desenvolver, dizendo de um modo geral, a sensibilidade estética dos alunos. Ora, desenvolver a sensibilidade é algo que pode ser feito pelas Artes Plásticas, pela Dança e pela Literatura. A sensibilidade para o Belo é desenvolvida, em graus diferentes, por diversas disciplinas, inclusive por outras não ligadas diretamente às artes. Mas a Música guarda uma especificidade que está relacionada ao desenvolvimento da sensibilidade auditiva: uma competência/habilidade, se não exclusiva, ao menos central para a área. E nisso ela se difere de qualquer outra. Este exemplo é interessante porque nos serve de analogia. A história e a geografia também produzem conhecimentos sobre o mundo social. E dizer que seus olhares são distintos do olhar sociológico já virou lugar comum. Que é que tem o olhar sociológico que é diferente do olhar dessas outras disciplinas?

Uma pista para respondermos a isto está numa importante reflexão do antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira em uma aula inaugural para o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, de 1994, e intitulada “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever”. Ele discorreu sobre o olhar, o ouvir e o escrever como atos cognitivos, mas que se revestem de um caráter especial enquanto constitutivos do conhecimento antropológico e sociológico. O autor nos lembra que o olhar e o ouvir são disciplinados pela teoria e possuem uma intencionalidade, isto é, são dirigidos pela nossa formação em ciências sociais e, portanto, são seletivos. Nas palavras do autor, “esse esquema conceitual [nossa teoria social] – disciplinadamente aprendido durante o nosso itinerário acadêmico, daí o termo disciplina para as matérias que estudamos –, funciona como um prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração”.

Ora, se ocorre esta domesticação do nosso olhar, do nosso ouvir e do nosso escrever pela formação disciplinada em ciências sociais, podemos afirmar que o contato dos jovens educandos com essas teorias, ainda que formatadas pela didática necessária ao nível médio de ensino, irá produzir neles uma percepção, uma compreensão e um modo de raciocínio que nenhuma outra disciplina poderá produzir. É exatamente essa compreensão ou essa percepção específica que indica a identidade da sociologia e que fornece seu sentido enquanto disciplina do ensino médio, não os seus conteúdos em si mesmos.

Outro antropólogo, Louis Dumont (Homo Hierarchicus – o sistema das castas e suas implicações, Louis Dumont, Edusp, 1997), relata um acontecimento que ele acredita demonstrar a importância desse tipo de aprendizagem. Diz o antropólogo,

“Permitam-me aqui uma anedota que apresenta um exemplo surpreendente de apercepção sociológica. Mais ou menos no final da preparação para o Certificado de etnologia, um condiscípulo que não se destinava à etnologia contou-me que lhe sucedera uma coisa estranha. Ele me disse mais ou menos o seguinte: outro dia, num ônibus, percebi de repente que não olhava para os meus companheiros de viagem como de costume; alguma coisa havia mudado em minha relação com eles, em minha maneira de me situar com relação a eles. Não havia mais “eu e os outros”; eu era um deles. Durante um longo momento me perguntei pela razão dessa transformação curiosa e repentina. De repente ela me surgiu: era o ensinamento de Mauss”. Conclui Dumont: “O indivíduo de ontem sentia-se social, percebera sua personalidade como ligada à linguagem, às atitudes, aos gestos, cuja imagem era devolvida pelos vizinhos. Eis o aspecto humano essencial de um ensino de etnologia”. Podemos acrescentar: eis o sentido do ensino de sociologia.

A questão metodológica fundamental é: seja qual for o conteúdo, ele será sempre um meio para se atingir o fim, que é o desenvolvimento da percepção sociológica. Mais que desvelar os chamados “problemas sociais” ou de ensinar um elenco sem fim de conceitos, o desenvolvimento da apercepção sociológica a que se refere Dumont é de fundamental importância. Para este autor, a sociologia atua contra a mentalidade individualista do homem moderno. Foi com o advento da modernidade e a formação das sociedades capitalistas que a ideologia individualista se constituiu em ideologia hegemônica, fornecendo a base para as representações ainda vigentes sobre o indivíduo, as relações ou interações humanas ou a política. Somente com o devido distanciamento de nossa própria sociedade e por meio de um olhar comparativo podemos perceber que nossa visão de mundo é mais uma entre tantas outras igualmente legítimas, resultantes do fato de que outros homens, de distintos lugares e tempos, organizam-se e vivem de maneiras diferentes da nossa. Tanto quanto essa apercepção nos permite, num duplo movimento, compreender nossa própria realidade pela descoberta inusitada de aspectos e relações antes insuspeitas. E assim chegamos à compreensão do quanto há de dependência onde vemos liberdade, do quanto há de diferença onde pensamos homogeneidade e do quanto há de hierarquia quando insistimos em ver igualdade. Talvez aí esteja a grandeza do estudo e ensino da sociologia: rasgar os véus das representações sociais e compreendê-las sob uma nova ótica, elas próprias como produtos sociais.

A apercepção sociológica de que trata Dumont não é fruto tão somente do conhecimento cognitivo de teorias sociais, pois se dá por meio do olhar e do ouvir como bem descreveu Roberto Cardoso de Oliveira, mas não de um olhar e um ouvir quaisquer, porém educados de um modo todo especial, como nos lembra Marta Zorzal.  Um olhar e um ouvir disciplinados pelo quadro teórico-conceitual e pela experiência em campo. Se definirmos competência como “as modalidades estruturais da inteligência, as ações e operações utilizadas para estabelecer relações entre objetos, situações, fenômenos e pessoas que desejamos conhecer” e as habilidades como o ‘saber-fazer’ decorrente das competências adquiridas (Portaria nº. 195, de 28 de dezembro de 2001, INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), veremos que o que se propõe neste texto não se distancia muito dos princípios teóricos nos quais se fundamentam os documentos da reforma. Mas é importante que se esclareça: essa aproximação é um tanto casual, pois se deu por caminhos diferentes. E em que pesem as críticas à noção de competências – entre outras, pelo seu caráter psicologizante –, sempre será possível recorrermos a uma redescrição dessa noção, inserindo-a numa compreensão histórica: as competências tidas não como universais, válidas para qualquer tempo e lugar, porém ainda mantendo seu caráter estruturador dos mecanismos cognitivos e sócio-afetivos dos indivíduos.

A “tomada de consciência”, como sugere Cristina Costa, o desenvolvimento da “apercepção sociológica”, como afirma Dumont, ou a construção de competências a partir das ciências sociais só é possível pela problematização de nossa própria realidade e pelo “espanto”, no sentido filosófico, diante de realidades culturalmente diferentes ou socialmente desiguais. Eis um olhar que é próprio de nossa disciplina, educado “a ver os mesmos panoramas por meio de perspectivas diferentes”; compreender a realidade social passa por esse desenvolvimento. Pode-se mesmo argumentar que tais competências também podem ser desenvolvidas pelas disciplinas de história e geografia, mas este é um argumento que não se sustenta. Senão vejamos, a história e a geografia podem tratar as questões referentes à crítica social e à diversidade cultural, mas de um modo secundário ou periférico; outras vezes numa perspectiva descritiva. Não se trata de objetivos principais de suas propostas. Tradicionalmente essas disciplinas têm-se voltado para “conteúdos” exigidos principalmente pela instituição do vestibular. Por fim, existe uma distância muito grande entre as discussões temáticas – reforma agrária, exclusão social, mudança social, sexualidade, democracia, consumismo, representação política, família, direitos humanos, sindicato, gênero, violência etc – e o desenvolvimento de modos de pensar ou de competências, como se vem definindo atualmente.

Já  a sociologia está unicamente voltada a essas discussões e, seja qual for o tema em foco, seu objetivo é sempre descortinar níveis de realidade, percepção e representação presentes nas ações humanas. Este é seu projeto desde sua fundação enquanto ciência. Para além da discussão se a disciplina deve ser tratada do ponto de vista conceitual ou temático, o que proponho é que seja qual for o conceito ou a problemática trabalhada em suas aulas, esses serão sempre meios para se atingir seu objetivo – a percepção sociológica. Ora, fazer a crítica ao capitalismo, por exemplo, pode ser importante. Mas o que garante ao professor que seu aluno está realmente compreendendo a realidade a partir de um prisma novo, como uma teia multideterminada, e não apenas se enchendo de informações parciais fornecidas pelo professor? O que garante, para usar um termo pouco adequado mas de fácil compreensão, que o aluno que concorda com as idéias sobre a desigualdade social levantadas pelo professor, não esteja mesmo assim lançando mão do “senso comum” e da evidência empírica? Quero dizer: concordar ou discordar das visões apresentadas nas aulas de sociologia não implicam numa mudança qualitativa de pensamento e linguagem, tanto quanto aprender conteúdos conceituais não promove, por si mesmo, o desenvolvimento de competências. Ora, um aluno que sabe da existência da desigualdade social – já evidente em si mesma – e que aprendeu as teorias explicativas das ciências sociais não é necessariamente um aluno que aprendeu a “pensar sociologicamente”. É preciso que o professor de sociologia não se contente com certas manifestações em sala de aula e busque desenvolver uma nova atitude ou postura cognitiva nos alunos. Ainda que dotemos o ensino dessa ciência de um projeto político, ele passará necessariamente pela apropriação, por parte do educando, de uma nova perspectiva sobre o mundo social que será garantida na mesma medida em que nos aproximarmos do objetivo para a disciplina, como o proposto nesse texto.

A prática do ensino de Sociologia:

investigação científica e narrativas sociais

Se foi dito que ensinar sociologia é, antes de tudo, desenvolver uma nova postura cognitiva no indivíduo, é necessário agora tentarmos, ao menos, fornecer “dicas” de como isso poderia ser desenvolvido na prática escolar: a percepção sociológica pode ser desenvolvida por meio de uma tomada de consciência sobre como a nossa personalidade está relacionada à linguagem, aos gestos, às atitudes, aos valores, à nossa posição na estrutura social – nas palavras de Dumont: para que o indivíduo de ontem torne-se social, não mais ele e os outros, mas ele em meio aos outros. E isso por meio da aproximação da metodologia de pesquisa à metodologia de ensino, bem como por ações pedagógicas que busquem desvelar e discutir narrativas sociais, sejam elas científicas, literárias e outras – suas implicações, seus dilemas, o que falam da heterogeneidade cultural e da estrutura social.

No entanto, não podemos esperar muita “experiência de campo” no Ensino Médio, especialmente em se tratando da rede pública de ensino, nem é nosso objetivo formar sociólogos ao fim dessa etapa do ensino escolar. Trata-se de promover o contato cognitivo do aluno com o pensar sociológico ainda que, na medida do possível, por meio da organização de algumas possibilidades de experiência com pesquisa.

Este texto não pretende fornecer idéias práticas bem elaboradas e isso por três razões: primeiro porque seria uma contradição com as idéias aqui expressas; depois porque, obviamente, não existem fórmulas para o que está proposto; por fim, porque este texto aponta para uma situação vivida pela disciplina e é, ao mesmo tempo, seu reflexo, o reflexo de uma área carente de produções sobre ensino de ciências sociais no nível médio de ensino. Seria impossível, no entanto, codificar as reações de espanto e curiosidade ou as mudanças sutis de percepção e linguagem produzidas nos jovens que já tiveram o privilégio do contato com a ciência social. Menos no trato com as teorias sociais e mais na postura dos alunos diante da vida em sociedade; menos no discurso informado por conceitos sociológicos – às vezes bem complexos –, mais nos olhares de quem se encontra em face de um enigma é que se pode aferir quão importante se torna para os alunos a descoberta sobre como nossa vida é perpassada por forças nem sempre visíveis – por nossa simples pertença a um grupo social. E não a um grupo social qualquer, mas a esse grupo, com sua identidade, posição na estrutura social, símbolos e recursos de poder. Quando o aluno compreende que os cheiros, os gestos, as gírias, as tensões e conflitos, as lágrimas e alegrias, enfim, o drama concreto dos seus pares, é em grande medida resultante de uma configuração específica de seu mundo, então a sociologia cumpriu sua finalidade pedagógica.

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